17 de dezembro de 2008

O valor do Direito: caso da Raposa Serra do Sol

Paulo César Quartiero é um agrônomo gaúcho que emigrou a meados dos anos 70 do extremo sul para o extremo norte do Brasil (...), adquirindo fazendas por uma extensão total de cerca de dez mil hectares, situados na Raposa Serra do Sol (RSS), território indígena; um território desamparado frente a esse tipo de invasões.
Reconhecidos os direitos indígenas pela Constituição de 1988, demarcada e titulada a RSS provisoriamente em 1993 e de forma definitiva em 2005, (...) Quartiero se converte no líder da frente anti-indígena (...). Em maio de 2008, foi preso sob a acusação de possuir explosivos e manter grupos armados que haviam assassinado pelo menos dez indígenas e destruído as propriedades de muitos outros. Também é acusado de corrupção política por recorrer à compra de votos para aceder a cargos públicos no Estado de Roraima. (...)
Quartiero, com o respaldo incondicional do Estado de Roraima, consegue catalisar um forte lobby no qual participam pessoas ligadas ao jurídico, à universidade, à política e à polícia. Organizam-se conferências nas quais as autoridades de todas essas áreas explicam que a demarcação do território indígena atenta contra o direito do Brasil ao desenvolvimento e prejudica os próprios "índios" porque os separa da "civilização"; que um território indígena fronteiriço constitui um grave perigo à "soberania nacional", colocando em risco a integridade do Brasil; que tanto os antropólogos, quanto as organizações não governamentais converteram-se em outro perigo contra o direito e os interesses brasileiros; que a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas responde a uma conspiração internacional para debilitar os Estados emergentes da América Latina; (...) etc. A ofensiva cultural e política é forte em Brasília ante os poderes federais. Na Câmara dos Deputados formou-se uma Frente Parlamentar de Apoio às Forças Armadas na Amazônia, que não oculta os vínculos com os interesses dos fazendeiros invasores dos territórios indígenas.
A frente jurídica recorre também ao Supremo Tribunal Federal (STF), conseguindo a paralisação das iniciativas de organismos federais, como o Ministério de Justiça, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Fundação Nacional do Índio (Funai), para sanear a RSS de invasões e ocupações. (...)
A parte indígena também opta pela via do direito e não pela da confrontação primariamente buscada por Quartiero e seu grupo. O STF se converte em um árbitro entre todas as partes, com aceitação também indígena. A questão torna-se fortemente polêmica para os onze membros do STF, provocando marcadas discrepâncias em seu seio. O ministro relator, o constitucionalista Carlos Augusto Ayres de Freitas Brito, assumiu o caso com tal interesse, paciência, dedicação e estudo que, contra prognóstico, vai conseguindo formar uma maioria favorável à parte indígena. Na audiência pública do dia 10 de dezembro manifestou-se a consistência dessa opinião que já pode, com segurança, ser considerada como a que será formalizada como sentença, que será ditada somente em 2009. E, por primeira vez na história, uma advogada indígena, Joênia Wapichana (Joênia Batista de Carvalho) atuou diante do STF.
(...)
Quartiero, por seu lado, não se mostra disposto a tornar as coisas fáceis para a execução da sentença. Suas declarações imediatas: "Lutamos para que a questão da demarcação fosse julgada, mas o resultado não foi o que esperávamos". E apressou-se a manifestar que não aceita: "O voto dos magistrados foi um voto rancoroso contra os produtores, contra os proprietários agrários, contra o Estado de Roraima; foi um voto ideológico, mais preocupado pelo politicamente correto do que pelos fatos". Abriga, todavia, a esperança de uma mudança: "A crise econômica está alcançando o Brasil e isso vai desmascarar o desgoverno, o ambientalismo e a desnacionalização". E gira, finalmente, do descaramento para a ameaça: "Não podemos continuar com situações tão vexatórias como a de acudir ao Supremo Tribunal Federal para que ser tachado de invasor, assassino de índios e destruidor da natureza"; "digo aos produtores que os problemas nunca vão acabar se não reagirmos. Hoje, são os índios", como amanhã, agrega, "serão outros". Já se vê aonde apontam em primeiro lugar as ameaças. Amanhã, dá a entender que os índios não estarão. O impulso é claramente genocida.
(...)
Bartolomé Clavero *
Publicado em Adital
Tradução: ADITAL


* Membro do Fórum Permanente das Nações Unidas para as Questões Indígenas

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