22 de dezembro de 2010

Os frutos

«Olá professora J.

Não falo consigo há muito, muito tempo. Mas, passados dois anos e meio de eu ter saído do colégio, quase a acabar o meu curso, de Erasmus em Paris, lembrei-me de si.
Vi uma entrevista a um filósofo, Robert Happé, que me chocou e emocionou com a simplicidade com que ele fala sobre a Vida.
Está dividido em 4 partes, se tiver tempo aconselho muito a ver

http://www.youtube.com/watch?v=tJypbzHlzWU

A professora conheceu-me numa altura em que ainda não tinha opiniões formadas nem objectivos definidos, e dou graças por isso.
Foi a primeira pessoa que nos consciencializou e nos abriu novos horizontes para além da sociedade desgastada onde vivíamos (e vivemos), para além dos interesses e dos pensamentos imaturos da idade.
Agora, com quase 21 anos, estou a meio de uma caminhada, de um crescimento onde, finalmente, penso estar a encontrar-me.
Esta entrevista descreve muitas das ideias que me têm acompanhado nas minhas reflexões e sentir-me-rei realizado se algum dia conseguir olhar para a vida como este homem olha.

Estou a enviar-lhe este e-mail porque esta caminhada começou no 11º ano com a professora, apesar de na altura eu não me ter apercebido.
»

Nestes dias de transição entre a minha missão como professora e a minha missão como mãe, partilho aqui um vídeo que me foi enviado por um ex-aluno, juntamente com as palavras que reporto acima, e que me deixou muito feliz.

A "colheita" dos meus primeiros alunos está este ano, na sua grande maioria, em Erasmus (estão no 3º ano da faculdade). E tem sido uma benção enorme receber sucessivos emails de alguns deles, que partilham comigo as suas impressões e, sobretudo, a redescoberta que estão a fazer de muitas das coisas que lhes ensinei ou que discuti com eles, há quatro ou cinco anos, e que ficaram guardadas nos seus corações à espera do tempo certo para germinar. E esse tempo chegou agora, já com 21 anos, à descoberta do mundo em cidades novas, em contacto com muitas pessoas e experiências diferentes que os desinstalam e os fazem pensar. Os mails têm vindo às vezes de alunos com quem eu nunca mais tinha falado, ou com quem eu não tinha ficado com uma relação especialmente próxima. Ainda tem sido mais bonito por isso mesmo, pela surpresa e o privilégio de ver os frutos de um trabalho que, pela sua natureza, é de confiança no mistério: será que irá germinar, isto que estou a fazer com os miúdos? Em quem dará fruto? E que fruto?

É uma benção enorme poder vislumbrar esse futuro que agora se tornou presente, à medida que eles se tornam homens e mulheres e têm a generosidade de olhar para trás e me saudar, de longe.

20 de dezembro de 2010

Despedida da barriga



A qualquer momento este blog vai entrar de licença de maternidade.

9 de dezembro de 2010

3 de dezembro de 2010

Le testament de Tibhirine

Eis o testamento de Christian de Chergé, prior de Tibhirine, o mosteiro protagonista do filme "Dos homens e dos deuses", que referi aqui no blog recentemente.


Quand un à-Dieu s'envisage


S’ il m’arrivait un jour - et ça pourrait être aujourd’ hui -
d’être victime du terrorisme qui semble vouloir englober maintenant
tous les étrangers vivant en Algérie,
j’aimerais que ma communauté, mon Eglise, ma famille,
se souviennent que ma vie était DONNEE à Dieu et à ce pays.
Qu’ils acceptent que le Maître Unique de toute vie
ne saurait être étranger à ce départ brutal.
Qu’ils prient pour moi:
comment serais-je trouvé digne d’une telle offrande ?
Qu’ils sachent associer cette mort
à tant d’autres aussi violentes
laissées dans l’indifférence de l’anonymat.
Ma vie n’a pas plus de prix qu’une autre.
Elle n’en a pas moins non-plus.
En tout cas, elle n’a pas l’innocence de l’enfance.
J’ai suffisamment vécu pour me savoir complice du mal
qui semble, hélas, prévaloir dans le monde,
et même de celui-là qui me frapperait aveuglément.

J’aimerais, le moment venu, avoir ce laps de lucidité
qui me permettrait de solliciter le pardon de Dieu
et celui de mes frères en humanité,
en même temps que de pardonner de tout cœur
à qui m’aurait atteint.
Je ne saurais souhaiter une telle mort.
Il me paraît important de le professer.
Je ne vois pas, en effet, comment je pourrais me réjouir
que ce peuple que j’aime soit indistinctement
accusé de mon meurtre.
C’est trop cher payer ce qu’on appellera,
peut-être, «la grâce du martyre»
que de la devoir à un Algérien, quel qu’il soit,
surtout s’il dit agir en fidélité à ce qu’il croit être l’Islam.
Je sais le mépris dont on a pu entourer
les Algériens pris globalement.
Je sais aussi les caricatures de l’ Islam
qu’encourage un certain islamisme.
Il est trop facile de se donner bonne conscience
en identifiant cette voie religieuse
avec les intégrismes de ses extrémistes.
L’Algérie et l’Islam, pour moi, c’est autre chose,
c’ est un corps et une âme.
Je l’ai assez proclamé, je crois,
au vu et au su de ce que j’en ai reçu,
y retrouvant si souvent ce droit-fil conducteur de l’Evangile
appris aux genoux de ma mère, ma toute première Eglise,
précisément en Algérie, et déjà,
dans le respect des croyants musulmans.
Ma mort, évidemment, paraîtra donner raison
à ceux qui m’ont rapidement traité de naïf, ou d’idéaliste:
«Qu’il dise maintenant ce qu’il en pense!»
Mais ceux-là doivent savoir que sera enfin libérée
ma plus lancinante curiosité.
Voici que je pourrai, s’il plaît à Dieu,
plonger mon regard dans celui du Père,
pour contempler avec lui Ses enfants de l’Islam
tel qu’Il les voit
, tout illuminés de la gloire du Christ,
fruits de sa Passion, investis par le Don de l’Esprit
dont la joie secrète sera toujours d’établir la communion
et de rétablir la ressemblance, en jouant avec les différences.
Cette vie perdue, totalement mienne, et totalement leur,
je rends grâce à Dieu qui semble l’avoir voulue tout entière
pour cette JOIE-là, envers et malgré tout.
Dans ce MERCI où tout est dit, désormais, de ma vie,
je vous inclus bien sûr, amis d’ hier et d’ aujourd'hui,
et vous, ô mes amis d’ ici, aux côtés de ma mère et
de mon père, de mes sœurs et de mes frères et des leurs,
centuple accordé comme il était promis !
Et toi aussi, l’ ami de la dernière minute,
qui n’ auras pas su ce que tu faisais.
Oui, pour toi aussi je le veux, ce MERCI,
et cet «A-DIEU» en-visagé de toi.
Et qu'il nous soit donné de nous retrouver, larrons heureux,
en paradis, s'il plait à Dieu, notre père à tous deux.
AMEN !
Incha Allah !

Alger, 1er décembre 1993
Tibhirine, 1er janvier 1994

Geração mimada e uma crise que faz bem

Dirigindo-me maioritariamente à classe média/médio-alta que lê o site essejota.net, escrevi o meu mais recente artigo na rubrica "O mundo à nossa volta", desta vez aproveitando o Orçamento de Estado, a Crise e o ambiente que se tem vivido em Portugal ao longo de Novembro. As reacções ao artigo têm sido polémicas, o que me dá prazer.

28 de novembro de 2010

Advento

Dá-nos Senhor, neste Advento, a coragem dos recomeços.
Não nos deixes acomodar ao saber daquilo que foi:
dá-nos largueza de coração para abraçar aquilo que é.
Afasta-nos do repetido, do juízo mecânico que banaliza a história,
pois a priva de surpresa e de esperança.
Torna-nos atónitos como os seres que florescem.
Torna-nos inacabados como quem deseja.
Torna-nos atentos como quem cuida.
Torna-nos confiantes como os que se atrevem
a olhar tudo, e a si mesmo, de novo
pela primeira vez.


(José Tolentino Mendonça)


Num 1º domingo de Advento em que, para mim, a espera do menino Jesus se torna a espera do anjo Gabriel, aquele que anuncia um tempo totalmente novo, e que cresce, cresce, no mais profundo segredo de mim e a qualquer momento me pode bater à porta.

24 de novembro de 2010

Do amor, da fé, da vida e da morte, do bem e do mal



Em 1996, sete monges da Ordem Cisterciense da Estrita Observância são raptados e assassinados em Tibhirine, aldeia aninhada na região argelina do Magrebe. É o culminar da escalada de violência que opõe o Grupo Islâmico Armado (GIA), extremista, ao governo que acusa de corrupto. O impacto deste horrível desaparecimento, cujos contornos exactos estão ainda por esclarecer, estende-se até aos nossos dias, levado agora ao cinema sob direcção do realizador francês Xavier Beauvois.

A obra, reconhecida com o Grande Prémio do Festival de Cannes e merecedora da forte e comovida chuva de aplausos que encheram o Palais des Festivals na noite do passado 23 de Maio, é uma extraordinária ode à fé, ao amor ao próximo e ao espírito de serviço que cumpre, em estilo e estrutura narrativa, o despojamento do seu sujeito.

Com efeito, é-nos dado comungar a forma abnegada como uma comunidade de homens lida com uma realidade adversa para a qual não contribui senão com a sua vocação de amor e dádiva. Uma vocação reafirmada ao arrepio das pressões externas para abandonarem a aldeia que servem à sua sorte.

Sem ceder a tentações sensacionalistas, Beauvois desvenda aos nossos olhos o dia-a-dia daquele pequeno mosteiro de Tibhirine, dos seus oito habitantes e da pacata população da aldeia local, induzindo progressivamente o adensar do contexto violento que involuntariamente envolve uns e outros.

Simples e acessível, a linguagem fílmica pretere o horror dos acontecimentos, trágicos, e da crescente violência, ao espírito com que aquela irmandade os enfrenta. Um espírito sustentado na sua extraordinária força e revitalizado na dúvida e fraqueza pela oração, pelo permanente desejo de união e comunhão, pelo tempo e oportunidade concedidos ao discernimento.

Mais que um nefasto episódio da história política ou religiosa, estamos perante uma obra que nos propõe um caminho, pela busca do verdadeiro sentido da vida: o que os sete monges sacrificados, na sua fé cristã, encontraram, e que Xavier Beauvois tão bem percorre, alumiando-o para crentes e não crentes.

Margarida Ataíde em Agência Ecclesia.

No Câmara Clara

Se estiverem interessados na minha "conversa" com o Marçal Grilo sobre a importância das Humanidades, aqui está o link: http://camaraclara.rtp.pt/#/arquivo/193 .

19 de novembro de 2010

Para apurarmos a consciência da realidade

Dos criadores do filme genial "The story of stuff", aqui vem uma nova produção:





(The story of stuff project - onde encontramos os vídeos "The story of stuff", "The story of bottled water", "The story of Cosmetics"... etc)

Para recuperarmos da depressão

Entrevistas no IMagazine, a pessoas inspiradoras que estão a mudar o mundo para melhor: aqui.

Para nos deprimirmos um bocadinho mais

Num país que se revelou uma jangada afundada com presunções de Titanic, eis o novo documentário que nos vai mostrar a nu a mentalidade de que também padecemos.


(nos cinemas)

14 de novembro de 2010

Câmara Clara - daqui a uma semana

Amigos,

no próximo domingo, dia 21 de Novembro, estarei com o professor Marçal Grilo no Câmara Clara (RTP2 às 22h30) a falar da "importância das humanidades".
É daqueles programas que me faz ter pena de não ter televisão: é mesmo bom. Espreitem aqui e "apareçam" por lá daqui a uma semana.

8 de novembro de 2010

Aminetu Haidar em Portugal

Reitoria da Universidade de Lisboa
4.ª Feira, dia 10 de Novembro, pelas 18h30


14 de Novembro de 2009. Aminetu Haidar é expulsa do seu país ocupado (o Sahara Ocidental) pelas autoridades marroquinas quando regressava a El Aiun, depois de ter recebido em Nova Iorque o Prémio Robert F. Kennedy; distinção atribuída anualmente pela prestigiada fundação a defensores dos direitos humanos que se tenham distinguido pela sua coragem, pondo em risco as suas próprias vidas. Sobre Haidar pendia a acusação: ter escrito SAHARAUI no espaço reservado à nacionalidade do impresso de fronteira.

Após 32 dias de greve de fome, na inóspita aerogare de Lanzarote, Canárias, Aminetu fez vergar a prepotência da potência ocupante e congregou a simpatia e a solidariedade à resistência do seu Povo em todo o mundo.

Nos momentos mais dramáticos da longa greve de fome, José Saramago — preocupado com o débil estado de saúde de Aminetu —, escrevia à consciência mundial: “Aminetu não tem um problema. Um problema tem seguramente Marrocos. E pode resolvê-lo… terá que resolvê-lo. Não se trata apenas de um problema de uma mulher corajosa e frágil, mas sim o de todo um povo que não se rende já que não entende nem a irracionalidade nem a voracidade expansionista, que caracterizavam outros tempos e outros graus de civilização…”

Aminetu Haidar está agora em Portugal para agradecer a todos aqueles que, há um ano atrás,
se solidarizaram com a sua luta.
Vamos recebê-la carinhosamente, associando-nos à iniciativa da Reitoria da Universidade de Lisboa.


ENTRADA LIVRE - DIVULGUEM A INICIATIVA DA REITORIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

5 de novembro de 2010

Muito bom: o elogio da crise

«Nós, os filhos do pós-revolução, crescemos com televisões a cores, jogos de computador, os videoclips da MTV a açucarar-nos a vida. Nunca estamos sozinhos - os telemóveis, os sms, o messenger, o facebook. Recebemos o conforto que faltou aos nossos pais. Trabalhamos num escritório com ar condicionado e wi-fi, numa rua com dezenas de multibancos. (...) Habituámo-nos a ver personagens como Valentim Loureiro ou Alberto João Jardim como figuras cómicas em vez de como desastres para a nação. Cruzámos os braços. Não fomos votar no referendo do aborto. Comprámos, por fim, a casa. Crescemos entre a abundância parola dos centros comerciais e o medo do risco. O medo: esse legado de uma ditadura tão insuficiente como pacóvia, que se agarra a nós como um polvo no cio. Portugal: o país de rabo entre as pernas, pobre, mas que se comporta como novo-rico.

Deixámos de acreditar que o mérito abre caminho, passámos a vida a empurrar elefantes na areia para chegar a algum lado, vimos como pagar por baixo da mesa compensa enquanto sucateiros, autarcas, empreiteiros, banqueiros, ex-ministros e caciques rasgavam o país com prédios encavalitados e envelopes sujos de dinheiro.

Dizemos que, mais de um século após terem sido escritas, as análises de Eça de Queirós ainda nos descrevem. Dizemos, sim, dizemos. E que fazemos? Ouvimos Saramago explicar porque escreveu "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Contou ele que pegou numa frase do heterónimo de Pessoa - "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo" - e quis perguntar ao autor se em Portugal, naquela década de 30, numa Lisboa fraca nas ambições, cinzenta nas caras e asfixiada no cérebro, bastava estar contente diante do espectáculo do mundo, sem fazer nada. Eu pergunto: e hoje, basta? Em todo este tempo, do D'Artacão à Luciana Abreu, do Pinheiro de Azevedo ao José Sócrates, do telefone de disco ao telemóvel com GPS, parece-me que alguma coisa se nos escapou, que alguma oportunidade se perdeu, que deixámos que nos enganassem, que pedimos para sair do barco e fomos para casa, muito mais confortável.

Com a crise nasce a oportunidade - de meter um fundo a este fundo. Chega de justificar qualquer falha com "isto é Portugal, pá". Seja o café que vem frio, seja o dinheiro que desapareceu do banco ou a impunidade sem vergonha, não queremos ouvir mais a desculpa "isto é Portugal, pá". Não serve.

Vocês deram-nos a liberdade, o ensino superior democratizado, o serviço nacional de saúde, os empréstimos à habitação. Nós agradecemos. Obrigado. Temos agora o mínimo necessário para dar o passo seguinte e não temos medo de assumir as nossas insuficiências. Não temos complexos de inferioridade. Sabemos que há muito a fazer. Mas queremos mais que um carro desportivo e o maior centro comercial da Europa e telejornais de hora e meia. Também já não somos fatalistas, nem desgraçados, nem nos resignamos diante da tristeza como se fosse uma marca genética. Isso, acreditem, já não nos diz nada.

Em breve, caso a depressão económica nos arrase, deixaremos de ter subsídios de férias e segurança social e ar que se respire. Em breve seremos mais frugais, mais sensatos, obrigatoriamente mais activos. Precisamos muito desta crise.»



Por Hugo Gonçalves, aqui, no i.

29 de outubro de 2010

Isn't it ironic?

No dia em que recebi a carta da segurança social a informar-me que ia receber 56 euros por mês de abono de família pré-natal (e pós-natal também, presumo), confirma-se no jornal que a partir de segunda feira os agregados familiares a partir do 4º escalão (em que me insiro eu) deixarão de o receber. Eheh.
Mas enfim, é tudo pelo bem comum.

27 de outubro de 2010

O casamento feliz, segundo Miguel Esteves Cardoso

«O casamento feliz não é nem um contrato nem uma relação. Relações temos nós com toda a gente. É uma criação. É criado por duas pessoas que se amam.
O nosso casamento é um filho. É um filho inteiramente dependente de nós. Se nós nos separarmos, ele morre. Mas não deixa de ser uma terceira entidade.
Quando esse filho é amado por ambos os casados - que cuidam dele como se cuida de um filho que vai crescendo -, o casamento é feliz. Não basta que os casados se amem um ao outro. Têm também de amar o casamento que criaram.
O nosso casamento é uma cultura secreta de hábitos, métodos e sistemas de comunicação. Todos foram criados do zero, a partir do material do eu e do tu originais.
Foram concordados, são desenvolvidos, são revistos, são alterados, esquecidos e discutidos. Mas um casamento feliz com dez anos, tal como um filho de dez anos, tem uma personalidade mais rica e mais bem sustentada, expressa e divertida do que um bebé com um ano de idade.
Eu só vivo desta maneira - que é o nosso casamento - vivendo com a Maria João, da maneira como estamos um com o outro, casados. Nada é exportável. Não há bocados do nosso casamento que eu possa levar comigo, caso ele acabe.
O casamento é um filho carente que dá mais prazer do que trabalho. Dá-se de comer ao bebé mas, felizmente, o organismo do bebé é que faz o trabalho dificílimo, embora automático, de converter essa comida em saúde e crescimento.
Também o casamento precisa de ser alimentado mas faz sozinho o aproveitamento do que lhe damos. Às vezes adoece e tem de ser tratado com cuidados especiais. Às vezes os casamentos têm de ir às urgências. Mas quanto mais crescem, menos emergências há e melhor sabemos lidar com elas.
Se calhar, os casais apaixonados que têm filhos também ganhariam em pensar no primeiro filho que têm como sendo o segundo. O filho mais velho é o casamento deles. É irmão mais velho do que nasce e ajuda a tratar dele. O bebé idealmente é amado e cuidado pela mãe, pelo pai e pelo casamento feliz dos pais.
Se o primeiro filho que nasce é considerado o primeiro, pode apagar o casamento ou substitui-lo. Os pais jovens - os homens e as mulheres - têm de tomar conta de ambos os filhos. Se a mãe está a tratar do filho em carne e osso, o pai, em vez de queixar-se da falta de atenção, deve tratar do mais velho: do casamento deles, mantendo-o romântico e atencioso. »


20 de outubro de 2010

O homem sem rosto

Quando eu era miúda e vivia em Oeiras, ir a Lisboa era uma aventura rara. E quando essa aventura incluía o Rossio, invariavalmente aparecia o homem-monstro que povoava a minha imaginação. Estava sempre do lado esquerdo da praça (para quem vem do rio), a pedir esmola, com o seu BI na mão, para confirmar que aquele tumor gigante e roxo que lhe cobria a face não era uma máscara: era mesmo a única cara que ele tinha para se apresentar ao mundo.
Tantas vezes sonhei com ele e pensei na sua identidade de homem-elefante português, na família que teria ou não, e com que comunicava vá-se lá saber como (será que ele consegue falar? certamente que não. E ouvir? talvez. Mas depois como é que responde, se não se vislumbram olhos no meio daquela massa disforme que lhe cobre o rosto? ou seja, como é que pode até escrever uma mensagem?).
Passados uns anos, deixei de o ver e achei que tinha morrido.

Hoje fiquei a saber pelo jornal que o seu nome é José e foi operado nos Estados Unidos.

16 de outubro de 2010

Já começou o Doclisboa

e eu ainda não tinha avisado!
Vá, vá, todos ao cinema, faz favor.


www.doclisboa.org

6 de outubro de 2010

Orçamento participativo de Lisboa


Vale a pena participar. É fácil e rápido: não custa nada.
Vejam aqui os projectos abertos a votação (são imensos e há para todos os gostos) e votem (até ao fim de Outubro) - para que depois não nos andemos a queixar de que Lisboa não funciona como queremos, mas não fazemos nada para participar quando nos é dada a oportunidade de o fazer!

29 de setembro de 2010

Uma outra economia

Hoje veio à luz um novo blogue, ajuda preciosa para quem quer alimentar uma consciência crítica acerca do mundo actual, numa leitura aprofundada, credível e de qualidade:
http://areiadosdias.blogspot.com/.

(blogue do Grupo de Trabalho Economia e Sociedade, da Comissão Nacional Justiça e Paz)

25 de setembro de 2010

Cidades modernas

«Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida. Simplesmente, houve a suspeita, o que já significa algo. Oran, pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem suspeitas, quer dizer, uma cidade inteiramente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar acto de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Isso tampouco é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.»



Camus, A peste.

24 de setembro de 2010

Manel - novo disco genial que me chegou às mãos

(estilo Beirut em Catalunha)

17 de setembro de 2010

A minha conferência

Deixo-vos aqui o link para o texto que serviu de base à minha conferência da passada terça-feira: "Questões do debate social contemporâneo: uma leitura dos problemas mais relevantes".

7 de setembro de 2010

Física quântica: aqui vou eu.






Legenda:

Instituto de Física Quântica: encontra-se aqui ou aqui.

3 de setembro de 2010

Este país é uma ervilha

(ou, como se diz em Itália - bem menos graciosamente: "questo paese è un buco del culo")


Este mês vou ter duas intervenções públicas em duas ocasiões de grande relevo: uma é na Semana Social, em Fátima (14 de Setembro), outra será num programa de televisão para o qual me convidaram ontem (e que anunciarei mais à frente, no blog). E ainda ontem fui entrevistada para um programa de rádio da Ecclesia.

A minha surpresa é cada vez maior, à medida que esta minha reduzida faceta pública vai adquirindo maior visibilidade. Porquê eu?

E a resposta não é, garanto-vos: porque sou uma pessoa com grande experiência nas questões sociais, ou com uma grande visão de conjunto, ou que está no terreno a trabalhar com os mais pobres, ou que "sabe muito destas coisas". Nada disto. Eu há anos que não faço nada ou quase nada a nível social e não sou de forma alguma uma erudita com coisas brilhantes para dizer.
A resposta assenta antes em três razões práticas: 1) porque sou jovem, 2) porque tenho jeito para comunicar, 3) porque não há mais ninguém.

Desde que descobriram que sou uma boa presença para falar em público, os convites sucedem-se. E eu pergunto sempre a mesma coisa: mas tem a certeza que me quer a mim? Olhe que eu sou uma ignorante, olhe que eu não sou ninguém, olhe que eu sei pouco sobre esse tema, olhe que há certamente pessoas mais capazes do que eu. Mas nada, confirmam sempre o convite e eu confirmo sempre as minhas suspeitas:

1) somos um país em que a gente vive de renda. Ou seja, a imagem pública que uma pessoa tem e que se formou numa determinada altura da sua vida, devido a alguma razão, sobrevive ao tempo que passa e faz com que o icon em que essa pessoa se torna se conserve, mesmo que ela já não faça nada do que dantes fazia e que as suas aparições públicas (pensemos nos velhos actores que vão à tv ser entrevistados, por exemplo) se alimentem do passado glorioso que teve e do prestígio que ainda tem.

2) somos um país com escassos recursos humanos e, por isso, os poucos que temos (por exemplo, eu), por mais fraquitos que sejam, acabam por ser sempre chamados. Isso vê-se na tv e nos jornais, com os diferentes comentadores políticos que, no fundo são sempre os mesmos, e vê-se nos eventos em que tenho participado.

1 de setembro de 2010

Leitura de fim de Verão

"Per un'oscura ragione sono ipersensibile a tutto ciò che stona, come se avessi una specie di orecchio assoluto per le stecche, per le contraddizioni".


(Muriel Barbery, L'eleganza del riccio, trad. E. Caillat e C. Poli)

12 de agosto de 2010

O grande obstáculo à felicidade: as preocupações

E já agora, partilho também a minha teoria acerca dos limites humanos à capacidade de ser feliz.
Acho que todos temos uma espécie de limite máximo e mínimo de preocupações. Estas fronteiras internas fazem com que, independentemente do que motiva concretamente as preocupações de cada um e nos impede de sermos plenamente felizes de forma contínua, todos vivamos sempre entre um limite mínimo abaixo do qual geralmente não descemos (seja este limite marcado pela preocupação em arranjar água e comida para a família ou pela necessidade de uma casa maior, de umas férias, de um trabalho mais estimulante, etc), e o limite máximo de preocupações que faz com que, por exemplo, um problema grande tenha sempre a capacidade de nos fazer relativizar e, às vezes, até esquecer os problemas pequenos, como se um copo se tivesse enchido demais, fazendo transbordar o líquido que sobra.
Sejam as nossas preocupações problemas efectiva e materialmente graves (como no caso de uma mãe africana que luta pela sobrevivência, ou de um doente com cancro, por exemplo), ou de tipo mais psicológico e mesquinho, o facto é que a felicidade e a satisfação se tornam igualmente, para todos os homens e mulheres deste mundo, uma conquista diária que exige grande sabedoria e "treino". Ninguém, enquanto adulto, é espontaneamente feliz. Todos temos tendência a "arranjar" alguma coisa com que nos preocupar, algo que nos torna insatisfeitos.
Por isso, uns optam pelo yoga, outros pela meditação (mais ou menos religiosa), outros pelas psicoterapia: o objectivo é o mesmo, aprender a aceitar o que a vida nos traz sem estar sempre numa corrida de obstáculos que acabam por nos impedir de gozar o presente, deixando-nos insatisfeitos e incapazes de apreciar os bons momentos (bonheure).

6 bilion others: happiness

Primeiro vi este vídeo e achei-o fascinante pela quantidade de sabedoria que encerra. Eu, que ando há 6 anos a pensar continuamente na Felicidade, no que é, no que pode ser, no que eu antes julgava que era e afinal compreendo que não é, em como escapa e como se reconquista, em como permanece ou não, em como é alimentada pelo quotidiano mais do que pela colecção de experiências, fiquei maravilhada com os testemunhos que aqui ouvi. E adorei verificar mais uma vez aquilo que já tenho observado em viagens por esse mundo fora: que todos nós, ricos e pobres, cultos ou não, partilhamos exactamente os mesmos dramas e aspiramos ao mesmo coração da vida. Aquilo que nos faz felizes e satisfeitos, é extraordinariamente comum.

Depois, descobri que este video é um de entre muitos outros, todos presentes no youtube, e todos eles baseados nesta mesma intuição, de que os conceitos essenciais da vida são comuns a todos nós: o perdão, o amor, a família, etc.

Que lindo projecto este: 6 bilion others. Espero que gostem.

11 de agosto de 2010

8 de agosto de 2010

A escola, a exigência e a criatividade

A semana passada aconteceu-me uma coisa inédita: senti que, por uma questão de sobrevivência, tenho de deixar de falar da educação. O estado do sistema educativo em Portugal está de tal forma em queda livre e funciona tão em contradição com tudo aquilo que acredito serem valores estruturantes da sociedade (o mérito, a justiça, a excelência, a exigência, a honestidade), que fico literalmente a rebentar de dores de cabeça só de ouvir outras pessoas a discuti-lo. Na praia. A sério. Aconteceu-me isto, mal a conversa rebentou, a propósito das novas ideias brilhantes da ministra e da experiência no ensino universitário de alguns dos intervenientes (que eram um dos meus irmãos, a minha cunhada e uns amigos), na praia, com sol e bolas de berlim, num ambiente crítico, mas descontraído. E simplesmente não consegui ficar ali, depois de intervir uma ou duas vezes, e apesar de concordar com tudo o que era dito. Tive de me afastar e tentar ler uma treta qualquer da Agatha Christie para descontrair, mas não consegui. Fiquei com dores de cabeça o resto da tarde e da noite, que só me passaram no dia seguinte.

Decidi que não volto a falar sobre isto, pelo menos enquanto não tiver algum poder de decisão nesta matéria, a nível macro ou micro que seja.

Neste momento, o que se faz e o que se advoga é de tal forma absurdo, que me sinto como alguém que fosse feminista no contexto da escravatura no século XVI. Estamos a anos luz (e a afastar-nos cada vez mais) daquilo que me parece ser a mais elementar sensatez. E eu sou uma formiga neste contexto. Tudo o que eu possa dizer ressoa só na minha cabeça, sem ser sequer audível por quem conduz este combóio.

E por isso coloco aqui este vídeo. Porque aborda o tema de uma perspectiva radicalmente diferente, focando-o de outro ângulo, pondo em causa estruturas que eu não ponho e que não são o meu "alvo", e por isso mesmo acho-lhe piada.

Eu gosto da escola de tipo académico e teórico que este senhor critica, só que não a defendo para todos, nem por imposição. Acredito na liberdade de educação e na possibilidade de escolha para pais e alunos. Deveria haver imensos caminhos possíveis, a nível escolar, adequados à diversidade de talentos e potencialidades das crianças. Com a condição, depois, de sermos sérios e consequentes no percurso escolhido: jogar de acordo com as regras e assumindo as consequências da falta de trabalho, seja qual for o caminho empreendido. O que implica uma meritocracia e uma exigência que cada vez mais são esmagadas em Portugal.


2 de agosto de 2010

Cantigas - o vídeo

(enquanto não montamos as filmagens como deve ser, cá fica um lamiré da música que andámos a fazer, aqui pela zona saloia de Lisboa)

1 de agosto de 2010

Entrevista no essejota.net

Espreitem aqui a entrevista que eu fiz a uma pessoa muito especial, e que acabou de ser editada no essejota: Dona Lurdes, mãe de todos.
Acho que encerra uma mensagem forte e inspiradora para todos. Espero que gostem!

26 de julho de 2010

Marta Gómez, um concerto falhado e uma entrevista como prémio de consolação

Este fim de semana fomos a Madrid só para ouvir esta senhora ao vivo.

E a vueling atrasou o voo mais de duas horas e meia......... pelo que perdemos o concerto na totalidade. Nem uma música deu para ouvir!

O consolo foi que a minha cara-metade tinha organizado tudo para entrevistar a grande Marta Gómez, e por isso ela e o seu manager esperaram por nós (que aterramos em Barajas mais ou menos ao mesmo tempo em que ela terminava a última música....) e fizemos-lhe uma deliciosa entrevista, super informal e calorosa, que nos deixou no ar a vontade de a trazer a Lisboa.

Quizás...

21 de julho de 2010

Desabafo sobre a ingratidão de ter razão

Ando a descobrir que isto de se achar que se tem razão no meio de doidos, é de uma solidão tremenda. Estou farta de não ser capaz de dançar ao som da música. Quer dizer, não o quero fazer, não quero ser capaz de o fazer e desprezo quem não tem espinha dorsal que se digne para caminhar segundo as suas próprias convicções e balança ao som de opções de comodidade. Mas, ao mesmo tempo, sofro profundamente ao procurar a coerência e ao me sentir realmente, visceralmente, solitária em certos ambientes, acompanhada só pela minha própria irritação (ou até escândalo) perante certas decisões ou acontecimentos. Toda a estatística me diz que devo estar errada, que não é possível que fulano A, sicrano B e beltrano C estejam todos errados e que só eu, idiota e convencida, seja o único soldado na fila com o passo certo. Sim, é absurdo, mas sinto com a clareza de uma evidência cartesiana que é mesmo assim, que eles é que estão errados e que, como uma amiga hoje providencialmente me disse, isto da democraticidades das opiniões é uma grande treta. E uma treta perigosa.
A maioria nem sempre tem razão. Aliás, provavelmente poucas vezes a tem.
E as instituições perdem tanto mais a noção disso quanto mais por si passam os anos.


(enfim, o que me vale é o Amor)

20 de julho de 2010

O presidente da SPM na Antena 1

Miguel Abreu, o novo presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática em entrevista à Antena 1, sobre o ensino e a avaliação da Matemática em Portugal. Para termos consciência da dimensão do problema e do desafio que temos pela frente.

Aqui.

16 de julho de 2010

5 de julho de 2010

Celebrate what's right with the world

Este vídeo é piroso, tem aquele estilo de americanada entusiasta e cheia de sorrisos ao pôr-de-sol. Sim, tudo isso.
Mas, caramba, it has a point. A mensagem é belíssima e vale mesmo a pena recebê-la e pensar sobre ela. Os exemplos também são óptimos para tornar mais profundo o toque, dentro de nós.
Enfim, acabei por gostar muito e acho que isto merece ser partilhado.

4 de julho de 2010

Duas sugestões

Sugiro-vos a leitura ocasional de dois blogs de queridos amigos meus:

- http://moradasdedeus.blogspot.com/. Blog para cristãos homossexuais que não desistiram de ser Igreja. De conteúdo variado e cheio de qualidade.

- http://procuradaterradonunca.blogs.sapo.pt/. Experiência de voluntariado em Calcultá de uma jovem maravilhosa de 20 anos. Para inspirar quem ainda sonha um mundo transformado por homens e mulheres de boa vontade.

3 de julho de 2010

A vos

1 de julho de 2010

Mais um a não perder


Acabou de chegar ao King.

30 de junho de 2010

O absurdo da vida

é o meu marido fazer anos, eu ter uma vida nova a crescer dentro de mim, o sol brilhar sobre Lisboa, e um dos nossos melhores amigos, de 35 anos, ter morrido hoje de cancro na cabeça. Ninguém merece morrer com 35 anos e desta maneira. Sobretudo quando a sua vida foi dedicada a fazer os outros felizes e a embelezar uma cidade com música e com as boas vibrações do reggae.

A não perder também...



... este filme, que está aí a chegar aos cinemas.

Sin nombre



A não perder este filme, que retrata a realidade crua das maras latinoamericanas e das rotas de emigração na fronteira entre o 3º e o 1º mundos, que atravessam o México e países vizinhos. Vivi isto, indirectamente, através de "ladrões e assassinos" com quem travei uma amizade doce, ao pôr-do-sol de vários dias, em El Salvador. Um arrepio "revê-los" aqui.

22 de junho de 2010

Os peixinhos do mar

Um amigo de um amigo nosso, que tem uns filhotes pequenos que adoram esta música do Andrea, resolveu fazer um video para se divertir e diverti-los a eles. Foi uma agradável surpresa, esta manhã! Ficou giro, não acham?

19 de junho de 2010

O facilitismo e os futuros engenheiros e cientistas do nosso país

Verdadeiros atestados de estupidez.
Texto de Filipe Oliveira, Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, sobre a evolução da dificuldade dos exames nacionais de Matemática. No sítio do costume.

17 de junho de 2010

16 de junho de 2010

Sensações da minha última semana


(vitimismo a mais?)

15 de junho de 2010

Caritas in Veritate #34

A caridade na verdade coloca o homem perante a admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente produtiva e utilitarista da existência. O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência. Por vezes o homem moderno convence-se, erroneamente, de que é o único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma presunção, resultante do encerramento egoísta em si mesmo, que provém — se queremos exprimi-lo em termos de fé — do pecado das origens. Na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretação dos fenómenos sociais e na construção da sociedade. «Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da acção social e dos costumes»*.
No elenco dos campos onde se manifestam os efeitos perniciosos do pecado, há muito tempo que se acrescentou também o da economia. Temos uma prova evidente disto mesmo nos dias que correm. Primeiro, a convicção de ser auto-suficiente e de conseguir eliminar o mal presente na história apenas com a própria acção induziu o homem a identificar a felicidade e a salvação com formas imanentes de bem-estar material e de acção social. Depois, a convicção da exigência de autonomia para a economia, que não deve aceitar «influências» de carácter moral, impeliu o homem a abusar dos instrumentos económicos até mesmo de forma destrutiva. Com o passar do tempo, estas convicções levaram a sistemas económicos, sociais e políticos que espezinharam a liberdade da pessoa e dos corpos sociais e, por isso mesmo, não foram capazes de assegurar a justiça que prometiam.
Deste modo, como afirmei na encíclica Spe salvi**, elimina-se da história a esperança cristã, a qual, ao invés, constitui um poderoso recurso social ao serviço do desenvolvimento humano integral, procurado na liberdade e na justiça. A esperança encoraja a razão e dá-lhe a força para orientar a vontade***. Já está presente na fé, pela qual aliás é suscitada. Dela se nutre a caridade na verdade e, ao mesmo tempo, manifesta-a. Sendo dom de Deus absolutamente gratuito, irrompe na nossa vida como algo não devido, que transcende qualquer norma de justiça. Por sua natureza, o dom ultrapassa o mérito; a sua regra é a excedência. Aquele precede-nos, na nossa própria alma, como sinal da presença de Deus em nós e das suas expectativas a nosso respeito.
A verdade, que é dom tal como a caridade, é maior do que nós, conforme ensina Santo Agostinho****Também a verdade acerca de nós mesmos, da nossa consciência pessoal é-nos primariamente «dada»; com efeito, em qualquer processo cognoscitivo, a verdade não é produzida por nós, mas sempre encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela «não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano»*****.
Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade é uma força que constitui a comunidade, unifica os homens segundo modalidades que não conhecem barreiras nem confins. A comunidade dos homens pode ser constituída por nós mesmos; mas, com as nossas simples forças, nunca poderá ser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para além de qualquer fronteira, ou seja, não poderá tornar-se uma comunidade verdadeiramente universal: a unidade do género humano, uma comunhão fraterna para além de qualquer divisão, nasce da convocação da palavra de Deus-Amor.
Ao enfrentar esta questão decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo e de fora; e, por outro, que o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade.



*Catecismo da Igreja Católica, 407; cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 25: AAS 83 (1991), 822-824.
**Cf. n. 17: AAS 99 (2007), 1000.
***Cf. ibid., 23: o.c., 1004-1005.
****Santo Agostinho expõe, de maneira detalhada, este ensinamento no diálogo sobre o livre arbítrio (De libero arbitrio, II, 3, 8s.). Aponta para a existência de um «sentido interno» dentro da alma humana. Este sentido consiste num acto que se realiza fora das funções normais da razão, um acto não reflexo e quase instintivo, pelo qual a razão, ao dar-se conta da sua condição transitória e falível, admite acima de si mesma a existência de algo de eterno, absolutamente verdadeiro e certo. O nome, que Santo Agostinho dá a esta verdade interior, umas vezes é Deus (Confissões X, 24, 35; XII, 25, 35; De libero arbitrio, II, 3, 8, 27), outras e mais frequentemente é Cristo (De magistro 11, 38; Confissões VII, 18, 24; XI, 2, 4).
*****Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 3: AAS 98 (2006), 219.

11 de junho de 2010

10 de junho de 2010

5 de junho de 2010

Problemas de consciência


Ao princípio, lendo só o título, irritou-me como sendo uma estória de traição aos próprios princípios, mais um episódio dos habituais jogos de poder e de influências. A política que obriga a compromissos que a pervertem.
Mas ao ler o breve artigo (que é só uma antecipação da entrevista que sai amanhã na Pública), em que são citadas as palavras de Assunção Cristas, a dita deputada, fiquei a achar que esta afinal é uma estória que tem muito mais a ver comigo do que poderia parecer.


1. Trata-se de uma deputada que foi "recrutada" pelo Paulo Portas devido à sua acérrima argumentação contra o aborto.
(como a minha)

2. A respeito de ser contra o aborto e a favor do casamento gay, diz que são duas posições compatíveis dentro de si, embora aos olhos do mundo pareça que vêm ambas no mesmo pacote: «Eu seria favorável a um casamento [entre pessoas do mesmo sexo]. O que pode parecer uma posição estranha da minha parte. Muita gente me aborda achando que sou contra; mas não sou.»

(Como me acontece a mim, que sou constantemente assediada pelos movimentos em defesa da família e o caraças, desde que participei em certos eventos contra o aborto.)

3. A propósito da necessidade de votar na assembleia no contexto de um partido com disciplina de voto, eis como justifica a sua decisão, que passou por uma declaração de voto em que explicitava a sua opinião: «Curiosamente, desagradei a toda a gente. Os que concordavam comigo reclamaram, mesmo com a declaração de voto, por acharem que isso não servia de nada. E reclamaram comigo os que achavam que eu devia ser radicalmente contra e, no final, tinha feito uma declaração de voto; então, que tivesse sido contra! Fiz o que podia fazer, de acordo com a minha consciência. Dou muito valor ao contrato com o eleitorado. É mau dizer-se uma coisa e fazer-se outra. Todos cedemos um bocadinho para que fique espelhada a sensibilidade maioritária.»

(no lugar dela, acho que eu teria feito o mesmo e me teria encontrado exactamente na mesma situação de incompreensão por parte de toda a gente)

4. E eis como explica a sua posição relativamente ao casamento de pessoas do mesmo sexo: «Tenho amigos próximos que me fazem ver as coisas de outra maneira. Fazem-me perceber que são pessoas iguais a nós, com tanto desejo e expectativa de ter uma vida feliz como nós. O que digo aos meus amigos que não entendem esta minha posição é que há um caminho de felicidade que não pode ser fechado, sobretudo quando os valores dessas pessoas não comprimem os nossos. Não acho que isto seja um ataque à família ‘tradicional’.” »

(tal como eu.)

Enfim, até podíamos ser amigas.

Só que eu nunca poderia ser do PP e nunca aceitaria uma situação em que o meu voto traísse as minhas convicções mais profundas, por mais democrática que eu seja. Por isso, adeus Assunção Cristas, respeito-te e acho que és uma pessoa séria e que faz bem o seu trabalho. Mas ainda bem que não é o meu.

Estou em estado de choque

«Quem reprovar no 8.º ano e fizer 15 anos até Agosto, pode tentar despachar o 3.º ciclo ainda este Verão, autopropondo-se aos exames nacionais de Língua Portuguesa e Matemática do 9.º ano e às provas de frequência das outras disciplinas realizadas a nível de escola; quem já começou o 8.º ano com 15 ou mais anos também se pode candidatar a concluir o 3.º ciclo do mesmo modo, mas para o fazer já teve que anular a matrícula no princípio do 3.º período, ou seja, já não está na escola; já os alunos que transitarem de ano terão que prosseguir a escolaridade normal, fazendo o 9.º ano nas aulas e não por antecipação.»

Concordo totalmente com a opinião da Helena Damião, no De Rerum Natura: «Os alunos com SUCESSO têm de percorrer todos os anos do ensino básico, enquanto os que têm INsucesso podem saltar um ano.(...) Estamos perante uma lógica… ao contrário! E não há argumento que a possa justificar, porque ela é perfeitamente injustificável.»

Mais notícias aqui e aqui.

3 de junho de 2010

Prémio Camões 2010

Fico feliz de já ter tido a oportunidade de aqui dar a devida visibilidade a Ferreira Gullar com a sua Notícia da Morte de Alberto da Silva.

Aqui ficam agora mais dois poemas seus:



Despedida

Eu deixarei o mundo com fúria
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.
De fato
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão profundas
quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique
Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.


Alegria

O sofrimento não tem
nenhum valor
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos

espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.

30 de maio de 2010

A democratização do direito de antena na sociedade de informação

Pior é impossível. Divirtam-se!


28 de maio de 2010

Quem é aquele tipo vestido de branco ao pé da JR?

Quem me conhece bem ou lê este blog com atenção, pode imaginar as emoções contrastantes que me atravessaram neste momento.

Aqui, página 28, fotos de 06944 a 06949.

27 de maio de 2010

Finalmente escrevo sobre isto, com as palavras de outrem, com que concordo

Segundo parece «em Mirandela não se fala noutra coisa», dizem as televisões do escândalo, salivando de gula. Pudera!

É a história da professora do 1.º Ciclo, ou seja, de crianças, que posou nua para a Playboy, pelo que foi suspensa das suas funções. Não tardou que se organizasse uma multidão de defensores, via Net, clamando contra a “perseguição”, a “repressão” e a mentalidade retrógrada dos provincianos, etc. e tal.

Já, porém, se disse e escreveu que não poderia ser outra a atitude de qualquer responsável educativo, fosse de uma escola, em Mirandela, ou do Colégio Moderno, em Lisboa. E fosse em Portugal ou no estrangeiro. E porquê? Porque não podia ser.

Saberão estes cavaleiros do direito individual por cima de toda a folha o que é a educação? É certo que há um processo poderosíssimo de sexualização (e até de pornocratização) da sociedade levado a efeito por dois princípios. Um, libertador, dos “preconceitos”, outro comercializador, seja do que for. (...)

Uma professora que vende a sua nudez – para uma revista que é ponta de icebergue de um submundo onde ninguém inteligente e sensível acha que as crianças devam ser integradas – pôs-se a jeito. Ou seja, uma professora que não tem consciência da dimensão sociocultural da educação, do lugar onde está, do que a sociedade lhe pede e da contradição em que cai, não deve ser professora. Demonstrou ipso factu que não está preparada, que lhe falta tanto ou mais que a indispensável competência científica e cultural. Como se quisesse ensinar música sem saber o que é uma pauta.

É claro que a sociedade dá sinais contraditórios e a “inocente” Bruna devia andar confusa entre a promoção de uma sexualização, que “liberta” e facilita, segundo dizem, a entrada no estrelato, e os sentimentos e ideias que a envolvem, e que vigoram na sociedade. Uma sociedade que quer a “libertação sexual”, que interesses económicos promovem de todas as formas, por um lado, mas que, por outro, continua a viver do que pensam e sentem as pessoas comuns.

(...) É também revelador que o protagonista profissional Mário Nogueira venha defender a Bruna e falar sindicalmente de atentado aos seus direitos e liberdades. Será que não percebe que a questão não é sindical?


João Boavida , via De rerum natura

26 de maio de 2010

LC 7, 22-23

«Ide e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se a Boa Nova. E bem-aventurado aquele que em mim se não escandalizar.»

Ando a aprender a aceitar milagres. Feliz aquele que não se escandaliza com a gratuidade pouco democrática de Deus.

25 de maio de 2010

Ricardo Araújo Pereira e a questão de Deus

Agradeço aos meus alunos que hoje - muito pertinentemente - me trouxeram para aula excertos desta conferência do RAP na capela do Rato, no âmbito de uma apresentação oral sobre o existencialismo. Deixo aqui uma parte especialmente genial sobre o Eclesiastes ("vaidade, tudo é vaidade", que ele justamente interpreta como "em vão, tudo é em vão"),

Ricardo Araújo Pereira e a questão de Deus (2) from Pastoral da Cultura on Vimeo.



mas aconselho a todos a visualização da totalidade dos vídeos no site do secretariado da pastoral da cultura.

17 de maio de 2010

Muito bem

Ele não podia vetar. Eu sempre disse que não podia vetar. Estava no programa eleitoral, caramba! Quem votou foi o povo português no dia das eleições. Qual referendo, qual carapuça! Nem a desculpa da inconstitucionalidade passou e o tribunal disse que sim, senhor, estava tudo em ordem. Por isso era só questão de avançar.
Parabéns a todos os que são englobados por esta lei e esperavam por ela. Que optem, se assim quiserem, pelo caminho maduro e sério do "casamento indissolúvel", não necessariamente "entre um homem e uma mulher", mas sim "entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida". E digam lá se isto não é bonito.
Chamem-me herética à vontade, que eu cá vou festejar.

Quando tudo corre bem

Tenho reflectido ultimamente sobre alguns mistérios do crescimento. É que eu sempre fui uma pessoa tão optimista, que sempre acolhi com surpresa e indignação os desaires da vida. Até que cheguei a uma fase complicada, que durou alguns anos, em que me senti submersa em frustrações múltiplas, e tive, por uma questão de sobrevivência, de aprender a conviver com elas e a reformular a minha visão do mundo e da vida por forma a incluí-las como parte integrante das coisas. É normal as coisas não correrem como queremos. Aceita-o, e ponto final. Ora, quando finalmente consolidei este grau de "maturidade", eis senão que... me começa a correr tudo bem. Extraordinário!
De facto, ando numa fase tão fantástica, com tantos "nós" finalmente desatados, tantas boas surpresas e tantas metas, tão longamente desejadas e agora surpreendentemente alcançadas.... que me sinto quase como se me tivessem tirado o tapete debaixo dos pés! Que parvoice! Mas realmente, gato escaldado de água fria tem medo. E quando a esmola é muita, o pobre desconfia. Se, por um lado, brinco com a situação e digo que, como estou em maré de sorte, tenho de ir jogar no euromilhões porque vou ganhar de certeza, por outro, guardo umas reservas de foguetes no meu coração para os atirar só quando tiver mesmo mesmo mesmo a certeza de que não estou a sonhar. E continuo a olhar de esguelha por cima do ombro, à cata de algum desaire, à cautela.
Será que é isto ser adulto? Deixar de conseguir aceitar as coisas boas como naturais?
A parte de ficar surpreendido com elas e, por isso mesmo, apreciá-las a dobrar, como algo que não se dá por garantido, é muito bom. Mas a dificuldade em olhar para o futuro (e, pelos visto, também para o presente) com aquela confiança boa e desarmada da juventude, não me parece uma vantagem.
Raios, há ainda imenso a fazer!

16 de maio de 2010

Perfect look

14 de maio de 2010

Reflexão de um ex-aluno meu sobre a necessidade de parar

Sim, fico babada e também é por isso que ponho isto aqui. Mas não só. Acredito mesmo que ter gente de 20 anos (e ateia!) a questionar as coisas desta maneira é um luxo. E o mundo de hoje, o tal de que ele fala, tem pouco destes luxos.

«(...) Parar é pecado no mundo em que vivemos. E parar é essencial a pensar, pensar só se consegue em silêncio e o silêncio é, por si, um momento de pausa. Não me refiro a alguém que se fecha sozinho num quarto escuro, embora esse seja um método válido. Falo sim da capacidade de olhar para dentro, de tentar aquilo que a Zara chamou de profundidade interior. Eu sinto falta disso, do silêncio.
Já repararam como as pessoas (e até as coisas) são barulhentas? Há no correr dos dias uma algazarra enorme! A tal ponto que se alguém pára ouve-se:
- Aquele é um incompetente, não sabe o que quer, está parado
e eu pergunto
- É mau não saber o que se quer?
e penso na imagem do filósofo que a (professora) Joana me deu na segunda aula do décimo ano: o filósofo é o homem que está no comboio e puxa a alavanca de emergência para pensar no motivo de estar em movimento
-É mau não saber o que se quer?
e ouço, por outras palavras,
-Olha que ninguém espera por ele!
e é verdade, ninguém espera por ele, ninguém espera pelos que perdem tempo a pensar no que querem: não são úteis, não são produtivos. Seguimos uma regra de produtividade sem lei (quão irónico não é isto...). Os gestores tomam opções de curto prazo que colocam em causa a saúde financeira da empresa, tudo porque os seus prémios são atribuídos consoante os resultados que apresentarem no fim do ano. As pessoas tomam opções de curto prazo porque os prémios são os de curto prazo. Tamanha miopia só pode ser perdoada a quem não quer ver e, hoje em dia, ver implica perder muito tempo.»

(texto completo no blog do Tomaz, A textura das palavras)

13 de maio de 2010

Emigração ética?

Não sei se concordo com a análise, mas este texto da Clara Ferreira Alvez é importante para nos fazer pensar.

«Os homens europeus descem sobre Marrocos com a missão de recrutar mulheres.
Nas cidades, vilas e aldeias é afixado o convite e as mulheres apresentam-se no local da selecção.
Inscrevem-se, são chamadas e inspeccionadas como cavalos ou gado nas feiras. Peso, altura, medidas, dentes e cabelo, e qualidades genéricas como força, balanço, resistência. São escolhidas a dedo, porque são muitas concorrentes para poucas vagas. Mais ou menos cinco mil são apuradas em vinte e cinco mil. A selecção é impiedosa e enquanto as escolhidas respiram de alívio, as recusadas choram e arrepelam-se e queixam-se da vida. Uma foi recusada porque era muito alta e muito larga.
São todas jovens, com menos de 40 anos e com filhos pequenos. Se tiverem mais de 50 anos são
demasiado velhas e se não tiverem filhos são demasiado perigosas. As mulheres escolhidas são
embarcadas e descem por sua vez sobre o Sul de Espanha, para a apanha de morangos. É uma
actividade pesada, muitas horas de labuta para um salário diário de 35 euros. As mulheres têm casa e comida, e trabalham de sol a sol. É assim durante meses, seis meses máximo, ao abrigo do que a Europa farta e saciada que vimos reunida em Lisboa chama Programa de Trabalhadores Convidados. São convidadas apenas as mulheres novas com filhos pequenos, porque essas, por causa dos filhos, não fugirão nem tentarão ficar na Europa. As estufas de morangos de Huelva e Almería, em Espanha, escolheram-nas porque elas são prisioneiras e reféns da família que deixaram para trás. Na Espanha socialista, este programa de recrutamento tão imaginativo, que faz lembrar as pesagens e apreciações a olho dos atributos físicos dos escravos africanos no tempo da escravatura, olhos, cabelos, dentes, unhas, toca a trabalhar, quem dá mais, é considerado pioneiro e chamam-lhe programa de "emigração ética".
(...) Os homens são os empregadores. Dantes, os homens eram contratados para este trabalho. Eram tão poucos os que regressavam a África e tantos os que ficavam sem papéis na Europa que alguém se lembrou deste truque de recrutar mulheres para a apanha do morango. Com menos de 40 anos e filhos pequenos.
(...) Para os marroquinos, árabes ou berberes, a selecção e a separação são ofensivas, e engolem a raiva em silêncio. Da Europa, e de Espanha, nem bom vento nem bom casamento. A separação faz com que muitas mulheres encontrem no regresso uma rival nos amores do marido.
(...) Que esta história se passe no século XXI e que achemos isto normal, nós europeus, é que parece pouco saudável. A Europa, ou os burocratas europeus que vimos nos Jerónimos tratados como animais de luxo,com os seus carrões de vidros fumados, os seus motoristas, as suas secretárias, os seus conselheiros e assessores, as suas legiões de servos, mais os banquetes e concertos, interlúdios e viagens, cartões decrédito e milhas de passageiros frequentes, perdeu, perderam, a vergonha e a ética. Quem trata assim as mulheres dos outros jamais trataria assim as suas.
(...) Damos às mulheres "uma oportunidade", dizem eles. E quem se preocupa com os filhos?Gostariam os europeus de separar os filhos deles das mães durante seis meses? Recrutariam os europeus mães dinamarquesas ou suecas, alemãs ou inglesas, portuguesas ou espanholas, para irem durante seis meses apanhar morango? Não.»

12 de maio de 2010

Um encontro centrado no diálogo e na beleza

Tive o privilégio de estar presente hoje no encontro do Papa no CCB, com representantes do mundo da cultura. Foi um momento bonito de diálogo, e devo dizer que estou a gostar da humildade do Papa nesta visita, em que se coloca numa posição de abertura, numa atitude mais acolhedora da diversidade que enriquece o mundo actual e mais capaz de assumir as culpas da Igreja (nomadamente quanto ao escândalo recente da pedofilia), sem cair na armadilha do auto-vitimismo. (aliás, aconselho o recente artigo do António Marujo sobre isto)

"Há toda uma aprendizagem a fazer quanto à forma de a Igreja estar no mundo (...) A convivência da Igreja, na sua adesão firme ao carácter perene da verdade, com o respeito por outras «verdades» ou com a verdade dos outros é uma aprendizagem que a própria Igreja está a fazer. Nesse respeito dialogante, podem abrir-se novas portas para a comunicação da verdade. (...) De facto, o diálogo sem ambiguidades e respeitoso das partes nele envolvidas é hoje uma prioridade no mundo, à qual a Igreja não se subtrai.
(...) A Igreja sente como sua missão prioritária, na cultura actual, manter desperta a busca da verdade e, consequentemente, de Deus; levar as pessoas a olharem para além das coisas penúltimas e porem-se à procura das últimas. Convido-vos a aprofundar o conhecimento de Deus tal como Ele Se revelou em Jesus Cristo para a nossa total realização. Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza."

Aqui estão comentários de alguns dos presentes.

6 de maio de 2010

Feira do livro

Ontem aprendi duas coisas:

1) que chegar aos 120 euros em livros é fácil demais

2) que graças ao projecto do corredor verde do Ribeiro Telles, que depois de 30 anos da sua concepção foi finalmente concretizado pelo Sá Fernandes, posso ir a pé (eventualmente a correr, com a prática) da minha casa (perto do Marquês de Pombal) a Monsanto, sempre em jardins ou pistas cicláveis. Um espectáculo!

1 de maio de 2010

Sobre o PEC

Para percebermos melhor os desafios e riscos do PEC, eis o texto que oportunamente preparou o Gruto de Trabalho Economia e Sociedade, da CNJP. A ler com atenção redobrada.

26 de abril de 2010

Eu na rádio, numa entrevista sobre a liberdade

Aqui, entrevista entre 16’25’’ e 40’25’’.

25 de abril de 2010

Querido aluno que estás há uma semana a preparar-te para festejar o 25 de Abril

Como explicar-te as decepções que tenho tido?

Como poder dizer-te que já não desço a avenida, sem arriscar queimar-te etapas que têm de ser percorridas - que deveriam ser percorridas por todos?

Gosto dos teus cartazes do MFA e tenho efectivamente aqui em casa aquele da Vieira da Silva que diz que a poesia está na rua. E acredito que esteve, e comovo-me a ver a alegria das pessoas naquele belíssimo documentário do Sérgio Tréfaut (que te aconselho: "Outro país"), ou as imagens do povo todo a descer a rua, aquelas célebres imagens que passam repetidamente nas reportagens.


Mas também é verdade que ontem no Largo do Carmo, onde passei por mero acaso, estavam as mesmas barraquinhas de todos os anos e os mesmo slogans e um homem a cantar "uma gaivota voava, voava" - e eu, querido aluno, já não suporto isto.

Como explicar-te que é retórica?

Que partilho contigo os ideais, mas estou farta de toda a conversa da esquerda, e dos vícios e da pequenez e da falta de meritocracia, e da repetição saudosista, e das palas nos olhos e do vitimismo e da demonização dos outros?

Não, é melhor não te dizer estas coisas.

Desce a avenida, sim, e até podes ir para a cidade universitária no primeiro de Maio. E, sobretudo, envolve-te, conhece o mundo do associativismo de esquerda por dentro. Faz isso tudo. E daqui a 10 anos falamos.

24 de abril de 2010

Erosão

Em dias como este, acho que estou a ficar velha porque dantes o convívio com os jovens dava-me um sentido de pertença e agora dá-me um sentido de exclusão.
E disse-me aquele amigo ontem a frase genial que leu não sei onde: o problema da juventude é que é desperdiçada nos jovens.

22 de abril de 2010

Breve caracterização de um flirt púdico

Ao contrário do se pensa, flirtar não é uma actividade exclusivamente romântica. Nem só as pessoas que pretendem atingir um nível considerável de intimidade física flirtam. Qualquer pessoa que queira ser apreciada e aceite num âmbito onde lhe falta alguma coisa (amizade, amor, trabalho), flirta, isto é, seduz e deixa-se seduzir com gosto.
Flirtar é falar de coisas banais, olhando-se nos olhos de forma ambígua, e sentir que foi tudo muito profundo. É passar subrepticiamente do cenário real onde nos encontramos para um cenário alternativo, de cores mais vivas e sensações mais cruzadas e presentes. E sentir magia, mesmo num parque de estacionamento.
Os amigos recentes flirtam, os vizinhos flirtam, os colegas de trabalho flirtam. Têm momentos fugazes em que sentiram que estavam a viver um segredo (mesmo à luz do dia) e que só o outro (o parceiro do flirt) é que percebe exactamente o que aqueles 20 segundos significaram.
A idade é irrelevante, as diferenças de idade também, e, surpreendentemente, embora seja mais habitual que os dois sujeitos do flirt sejam de sexos diferentes (ou reciprocamente atractivos, para não excluir ninguém), nem isso é imprescindível. Duas amigas que acabaram de se conhecer e desejam imenso agradar uma à outra para encontrarem a confidente ideal, flirtam. Há que admiti-lo.
Claro que nem sempre estamos numa de flirtar, claro, e nem com toda a gente. É preciso estar na mesma disposição, ao mesmo tempo, na mesma altura. O que, na verdade, nem sempre acontece, mas também não é assim tão difícil. E quando começa o flirt, nem é preciso gostar das mesmas piadas e ter a mesma agilidade cognitiva: porque quando flirtamos, ficamos todos muito mais susceptíveis e qualquer boca fácil se torna irresistível.
É digno de nota que flirtar implica uma intimidade inesperada, por isso velhos amigos não flirtam. Em geral. Mas, pelo contrário, breves flirts podem evoluir para se tornarem bons amigos.
Ou não. Também podem desaparecer como todas as coisas breves. E voltar só a ser colegas de trabalho.
Permanecerá a sensação incómoda de que aquele momento com aquela conversa sob aquela luz ténue foi especial e se perdeu. Até ao dia em que parecerá só pateta.
E então está definitivamente na altura de arranjar outro flirt.

18 de abril de 2010

Carta aberta aos bispos de todo o mundo

A não perder esta belíssima e corajosa carta aberta de Hans Küng, teólogo contemporâneo de Joseph Ratzinger, que com ele esteve presente no Concílio Vaticano II e que agora classifica o seu pontificado como o das "oportunidades desperdiçadas": aqui.

17 de abril de 2010

Divagações sobre a minha descrença



Não consigo deixar de sentir esta convicção de que Deus não brinca e não é incoerente. Deus não me teria dado a Razão para depois exigir que eu abdique totalmente dela quando me quero relacionar com Ele. Por isso sou considerada descrente. Porque questiono a lógica da fé e da confiança, quando me parece irracional.

A história de rezar para pedir coisas boas, por exemplo. Não é lógico não culpabilizar Deus pelas coisas más e depois achar que é Ele o responsável pelas coisas boas. Se Deus interviesse na minha vida desta forma (pede e ser-te-á dado), o que é que aconteceu no caso do meu amigo Ricki que está com um cancro em fase terminal no hospital, com 35 anos e reduzido a 50 kilos?
Ninguém quer achar que Deus tem alguma culpa disso, e eu percebo, mas então também não é d'Ele a responsabilidade de me dar aquilo que eu lhe peço nas orações. Ou é responsável por tudo (bom e mau) ou não é responsável por nada. Se não, não era Deus, era um Macgyver que às vezes consegue ser bem sucedido nas suas tentativas de salvar o mundo, e outras não.
E isto aplica-se também aos milagres, naturalmente.
Ontem estive a falar destas coisas com uns amigos meus que são todos new age e acreditam na Energia e no Universo como entidade que nos dá tudo aquilo de que precisamos, basta confiar. Tudo começou com um episódio impressionante que aconteceu quando eu estava a chegar de carro com uma amiga a quem eu estava a dar uma boleia. Eu queria estacionar o carro num lugar que vi e que ficava a uns 100 ou 200 metros da porta da casa para onde nos dirigíamos. O contexto era o centro de Lisboa, com o habitual caos para estacionar, naturalmente. Ela, que tem uma deficiência grave e muitas dificuldades de mobilidade, disse que não, para eu continuar a aproximar-me da porta e confiar no Universo, que haveriamos de encontrar um lugar mais adequado às nossas necessidades. E pimba, incrível mas é verdade, estava um lugar à nossa espera mesmo à porta. Este episódio deu logo o mote para montes de conversas ao longo do serão, sobre a minha "descrença" no universo, que me impede de estar receptiva às coisas boas da vida. Mas, lá está, eu não consigo simplesmente suspender o meu lado racional.

Isto de as coisas boas dependerem da crença de que vão acontecer para acontecerem, é de tal forma anti-científico e placébico que eu sinto-me regressada aos tempos mitológicos se pensar assim. Acredita, e o Universo dar-te-á aquilo que lhe pedires (ou aquilo de que precisas). Se não to der, podemos sempre alegar que 1) não acreditaste o suficiente; ou 2) que aquilo que estavas a pedir não era aquilo de que realmente precisavas e o universo, que é mais inteligente do que tu, optou por te dar as coisas certas. É como a astrologia: bate sempre certo! Retire-se a palavra "universo" desta frase e ponha-se a palavra "Deus", e vemos que o raciocínio das pessoas que têm "muita fé" é exactamente o mesmo.

Isto é conversa de charlatão. Não consigo aderir a isto, e o meu amigo Ricki, que é das pessoas mais positivas e entusiastas da vida que eu alguma vez conheci, e que neste momento está morrer cheio de sofrimento no hospital, confirma a minha suspeita.
Dizer "não há coincidências", "nada acontece por acaso", é negar a evidência. É utilizar os casos que confirmam esta tese (tipo o lugar de estacionamento de ontem) e ignorar todos os outros, o terramoto no Haiti, os judeus da 2ª guerra mundial, o cancro do Ricki. Ou então, pior ainda, querer convencer-nos que as vítimas desta História global em que estamos inseridos, também estão a realizar o seu papel, que o sentido de tudo isto nos escapa mas existe, e que o sofrimento deles era de alguma forma necessário para a harmonia do todo. Porra. Isso ainda é mais revoltante. Como se Deus (ou o Universo) instrumentalizasse as pessoas assim. Como nos casos em que escapamos ilesos a um acidente em que 5 outras pessoas morreram, e dizemos que Deus estava do nosso lado. Que o Universo conspirou a nosso favor. E os outros? São filhos bastardos do Universo? São os menos preferidos de Deus? Não, são os tais que precisam de sofrer para a harmonia do todo, aqueles que, numa tela gigante, têm o papel de sombras.

É muito mais agradável andar pela vida a achar que temos anjos da guarda ao nosso lado (ou forças cósmicas e energia com esse mesmo papel). Mas eu sinto interiormente esta forte convicção de que isso é regressar aos Lusíadas (que já na altura eram assumidamente ficção) e achar que somos marionetas nesta estória em que se faz de nós o que se quiser, em que os deuses ajudam uns e não outros porque lhes apeteceu.

E, repito, se houver um deus que me criou e me ama, Ele não me teria dado esta racionalidade insistente para depois exigir de mim que a ignore nos assuntos da fé. Claro que é pela Fé que eu posso acreditar que Ele existe. Mas depois, o caminho da fé não pode ser contraditório com as luzes da Razão.