Não consigo deixar de sentir esta convicção de que Deus não brinca e não é incoerente. Deus não me teria dado a Razão para depois exigir que eu abdique totalmente dela quando me quero relacionar com Ele. Por isso sou considerada descrente. Porque questiono a lógica da fé e da confiança, quando me parece irracional.
A história de rezar para pedir coisas boas, por exemplo. Não é lógico não culpabilizar Deus pelas coisas más e depois achar que é Ele o responsável pelas coisas boas. Se Deus interviesse na minha vida desta forma (pede e ser-te-á dado), o que é que aconteceu no caso do meu amigo Ricki que está com um cancro em fase terminal no hospital, com 35 anos e reduzido a 50 kilos?
Ninguém quer achar que Deus tem alguma culpa disso, e eu percebo, mas então também não é d'Ele a responsabilidade de me dar aquilo que eu lhe peço nas orações. Ou é responsável por tudo (bom e mau) ou não é responsável por nada. Se não, não era Deus, era um Macgyver que às vezes consegue ser bem sucedido nas suas tentativas de salvar o mundo, e outras não.
E isto aplica-se também aos milagres, naturalmente.
Ontem estive a falar destas coisas com uns amigos meus que são todos new age e acreditam na Energia e no Universo como entidade que nos dá tudo aquilo de que precisamos, basta confiar. Tudo começou com um episódio impressionante que aconteceu quando eu estava a chegar de carro com uma amiga a quem eu estava a dar uma boleia. Eu queria estacionar o carro num lugar que vi e que ficava a uns 100 ou 200 metros da porta da casa para onde nos dirigíamos. O contexto era o centro de Lisboa, com o habitual caos para estacionar, naturalmente. Ela, que tem uma deficiência grave e muitas dificuldades de mobilidade, disse que não, para eu continuar a aproximar-me da porta e confiar no Universo, que haveriamos de encontrar um lugar mais adequado às nossas necessidades. E pimba, incrível mas é verdade, estava um lugar à nossa espera mesmo à porta. Este episódio deu logo o mote para montes de conversas ao longo do serão, sobre a minha "descrença" no universo, que me impede de estar receptiva às coisas boas da vida. Mas, lá está, eu não consigo simplesmente suspender o meu lado racional.
Isto de as coisas boas dependerem da crença de que vão acontecer para acontecerem, é de tal forma anti-científico e placébico que eu sinto-me regressada aos tempos mitológicos se pensar assim. Acredita, e o Universo dar-te-á aquilo que lhe pedires (ou aquilo de que precisas). Se não to der, podemos sempre alegar que 1) não acreditaste o suficiente; ou 2) que aquilo que estavas a pedir não era aquilo de que realmente precisavas e o universo, que é mais inteligente do que tu, optou por te dar as coisas certas. É como a astrologia: bate sempre certo! Retire-se a palavra "universo" desta frase e ponha-se a palavra "Deus", e vemos que o raciocínio das pessoas que têm "muita fé" é exactamente o mesmo.
Isto é conversa de charlatão. Não consigo aderir a isto, e o meu amigo Ricki, que é das pessoas mais positivas e entusiastas da vida que eu alguma vez conheci, e que neste momento está morrer cheio de sofrimento no hospital, confirma a minha suspeita.
Dizer "não há coincidências", "nada acontece por acaso", é negar a evidência. É utilizar os casos que confirmam esta tese (tipo o lugar de estacionamento de ontem) e ignorar todos os outros, o terramoto no Haiti, os judeus da 2ª guerra mundial, o cancro do Ricki. Ou então, pior ainda, querer convencer-nos que as vítimas desta História global em que estamos inseridos, também estão a realizar o seu papel, que o sentido de tudo isto nos escapa mas existe, e que o sofrimento deles era de alguma forma necessário para a harmonia do todo. Porra. Isso ainda é mais revoltante. Como se Deus (ou o Universo) instrumentalizasse as pessoas assim. Como nos casos em que escapamos ilesos a um acidente em que 5 outras pessoas morreram, e dizemos que Deus estava do nosso lado. Que o Universo conspirou a nosso favor. E os outros? São filhos bastardos do Universo? São os menos preferidos de Deus? Não, são os tais que precisam de sofrer para a harmonia do todo, aqueles que, numa tela gigante, têm o papel de sombras.
É muito mais agradável andar pela vida a achar que temos anjos da guarda ao nosso lado (ou forças cósmicas e energia com esse mesmo papel). Mas eu sinto interiormente esta forte convicção de que isso é regressar aos Lusíadas (que já na altura eram assumidamente ficção) e achar que somos marionetas nesta estória em que se faz de nós o que se quiser, em que os deuses ajudam uns e não outros porque lhes apeteceu.
E, repito, se houver um deus que me criou e me ama, Ele não me teria dado esta racionalidade insistente para depois exigir de mim que a ignore nos assuntos da fé. Claro que é pela Fé que eu posso acreditar que Ele existe. Mas depois, o caminho da fé não pode ser contraditório com as luzes da Razão.