17 de abril de 2010

Divagações sobre a minha descrença



Não consigo deixar de sentir esta convicção de que Deus não brinca e não é incoerente. Deus não me teria dado a Razão para depois exigir que eu abdique totalmente dela quando me quero relacionar com Ele. Por isso sou considerada descrente. Porque questiono a lógica da fé e da confiança, quando me parece irracional.

A história de rezar para pedir coisas boas, por exemplo. Não é lógico não culpabilizar Deus pelas coisas más e depois achar que é Ele o responsável pelas coisas boas. Se Deus interviesse na minha vida desta forma (pede e ser-te-á dado), o que é que aconteceu no caso do meu amigo Ricki que está com um cancro em fase terminal no hospital, com 35 anos e reduzido a 50 kilos?
Ninguém quer achar que Deus tem alguma culpa disso, e eu percebo, mas então também não é d'Ele a responsabilidade de me dar aquilo que eu lhe peço nas orações. Ou é responsável por tudo (bom e mau) ou não é responsável por nada. Se não, não era Deus, era um Macgyver que às vezes consegue ser bem sucedido nas suas tentativas de salvar o mundo, e outras não.
E isto aplica-se também aos milagres, naturalmente.
Ontem estive a falar destas coisas com uns amigos meus que são todos new age e acreditam na Energia e no Universo como entidade que nos dá tudo aquilo de que precisamos, basta confiar. Tudo começou com um episódio impressionante que aconteceu quando eu estava a chegar de carro com uma amiga a quem eu estava a dar uma boleia. Eu queria estacionar o carro num lugar que vi e que ficava a uns 100 ou 200 metros da porta da casa para onde nos dirigíamos. O contexto era o centro de Lisboa, com o habitual caos para estacionar, naturalmente. Ela, que tem uma deficiência grave e muitas dificuldades de mobilidade, disse que não, para eu continuar a aproximar-me da porta e confiar no Universo, que haveriamos de encontrar um lugar mais adequado às nossas necessidades. E pimba, incrível mas é verdade, estava um lugar à nossa espera mesmo à porta. Este episódio deu logo o mote para montes de conversas ao longo do serão, sobre a minha "descrença" no universo, que me impede de estar receptiva às coisas boas da vida. Mas, lá está, eu não consigo simplesmente suspender o meu lado racional.

Isto de as coisas boas dependerem da crença de que vão acontecer para acontecerem, é de tal forma anti-científico e placébico que eu sinto-me regressada aos tempos mitológicos se pensar assim. Acredita, e o Universo dar-te-á aquilo que lhe pedires (ou aquilo de que precisas). Se não to der, podemos sempre alegar que 1) não acreditaste o suficiente; ou 2) que aquilo que estavas a pedir não era aquilo de que realmente precisavas e o universo, que é mais inteligente do que tu, optou por te dar as coisas certas. É como a astrologia: bate sempre certo! Retire-se a palavra "universo" desta frase e ponha-se a palavra "Deus", e vemos que o raciocínio das pessoas que têm "muita fé" é exactamente o mesmo.

Isto é conversa de charlatão. Não consigo aderir a isto, e o meu amigo Ricki, que é das pessoas mais positivas e entusiastas da vida que eu alguma vez conheci, e que neste momento está morrer cheio de sofrimento no hospital, confirma a minha suspeita.
Dizer "não há coincidências", "nada acontece por acaso", é negar a evidência. É utilizar os casos que confirmam esta tese (tipo o lugar de estacionamento de ontem) e ignorar todos os outros, o terramoto no Haiti, os judeus da 2ª guerra mundial, o cancro do Ricki. Ou então, pior ainda, querer convencer-nos que as vítimas desta História global em que estamos inseridos, também estão a realizar o seu papel, que o sentido de tudo isto nos escapa mas existe, e que o sofrimento deles era de alguma forma necessário para a harmonia do todo. Porra. Isso ainda é mais revoltante. Como se Deus (ou o Universo) instrumentalizasse as pessoas assim. Como nos casos em que escapamos ilesos a um acidente em que 5 outras pessoas morreram, e dizemos que Deus estava do nosso lado. Que o Universo conspirou a nosso favor. E os outros? São filhos bastardos do Universo? São os menos preferidos de Deus? Não, são os tais que precisam de sofrer para a harmonia do todo, aqueles que, numa tela gigante, têm o papel de sombras.

É muito mais agradável andar pela vida a achar que temos anjos da guarda ao nosso lado (ou forças cósmicas e energia com esse mesmo papel). Mas eu sinto interiormente esta forte convicção de que isso é regressar aos Lusíadas (que já na altura eram assumidamente ficção) e achar que somos marionetas nesta estória em que se faz de nós o que se quiser, em que os deuses ajudam uns e não outros porque lhes apeteceu.

E, repito, se houver um deus que me criou e me ama, Ele não me teria dado esta racionalidade insistente para depois exigir de mim que a ignore nos assuntos da fé. Claro que é pela Fé que eu posso acreditar que Ele existe. Mas depois, o caminho da fé não pode ser contraditório com as luzes da Razão.

2 comentários:

  1. se O compreendessemos sempre, seríamos deuses.

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  2. Cheguei ao teu blogue, se não me engano, por uns comentários no blogue do Guillul, acerca da pena de morte.

    Na altura achei o ponto de vista dele incompreensível para um cristão, especialmente em alguém em quem me habituei a ver um discernimento que raramente encontro nos blogues católicos, que não passam das imagens foleiras de santinhos e posts do género "Gosto tanto de Jesus e tenho confiança que Ele me vai ajudar!!!"

    Foi portanto uma surpresa chegar aqui e deparar-me exactamente com este post, onde dizes, muito melhor do que eu alguma vez seria capaz de exprimir, aquilo que me faz sentido quando se fala de sofrimento, vontade de Deus, etc, etc.

    Antes de mais, não podia deixar de concordar contigo quando dizes que não faria sentido Deus ter-nos dado uma razão e depois exigir-nos que abdiquemos dela para podermos ter uma relação com Ele. Aliás, nunca é demais sublinhar que o fideísmo é condenado pela Igreja (formalmente, pelo menos).

    Quanto à ideia de que o "Universo" nos dará tudo o que precisamos, não penso que seja prerrogativa dos gases místicos New Age: quantas vezes se ouvem católicos dizer que se algo aconteceu é porque Deus quer e há-de haver uma razão escondida para isso.

    É pôr um peso terrível e bastante pernicioso às costas dos crentes: se estás numa situação má e sofres com isso a culpa não é da situação lixada mas da tua pouca fé e obediência. Deixa-me perplexa a quantidade de pessoas que à conta de raciocínios como este se deixam subjugar pelas situações e se demitem da procura activa de uma solução melhor, enquanto esperam que caia do céu um sentido para o que estão a passar, sem coragem para mudar de contexto com medo de estarem a desobedecer ao "plano de Deus para elas."
    Talvez porque é que como dizes: "É muito mais agradável andar pela vida a achar que temos anjos da guarda ao nosso lado" (ou forças divinas que têm tudo planeadinho para nós) do que aceitar que há sofrimentos que não têm qualquer razão místico-gasosa por trás, e que se queremos coisas boas temos que ir à luta por elas.


    (Bom, cheguei e despejei. Não me leves a mal, mas cada vez menos me sinto em casa nos meios católicos em que me movo, portanto quando encontro lugares como o teu fico assim um bocado em polvorosa :)

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