15 de fevereiro de 2006

CONFLITO DE CIVILIZAÇÕES?


A propósito da recente publicação de caricaturas de Maomé e das reacções de indignação que se seguiram, tem-se levantado de novo a questão do conflito de civilizações. (...)
Penso, no entanto, que, a este propósito, antes de falar em conflito de civilizações, importa clarificar princípios que se apresentam, às vezes superficialmente, como característicos de cada das civilizações em confronto. Um deles é o da liberdade de expressão e o seu estatuto nas sociedades democráticas. O outro é o da relação entre Islão e violência.

A liberdade de expressão, estrutural numa sociedade livre e democrática, não pode ser absoluta, ao contrário do que se tem dito e do que poderia decorrer de uma concepção individualista e associal da liberdade. Não há liberdades absolutas. A liberdade de expressão há-de compatibilizar-se com as outras liberdades e outros valores constitucionais. A liberdade de cada um há-de compatibilizar-se com a liberdade dos outros.
(...) O artigo 252º do Código Penal português pune o ultraje a acto de culto religioso e o artigo 251º do mesmo diploma pune o ultraje por motivo de crença religiosa. Saliente-se que este último artigo pune a ofensa ou escárnio em razão de crença ou função religiosa apenas quando tal se verifique de «forma adequada a perturbar a paz pública».
Parece-me criticável esta exigência, pois o respeito pelos sentimentos religiosos de outrem justifica, por si só, a punição e não deveria fazer-se a distinção entre os casos que podem afectar a paz pública (como é, inequivocamente, aquele a que estamos a assistir) e os que não a afectam, porventura porque dizem respeito a uma comunidade religiosa pacífica ou de reduzida expressão numérica. No caso em apreço, as expressões de solidariedade de vários responsáveis políticos para com os muçulmanos ofendidos nos seus sentimentos deveria ter sido anterior, e não posterior, às manifestações de violência e de perturbação da paz pública. (...)
Há que distinguir a crítica, típica de sociedades tolerantes, da ofensa e do ultraje, que são uma clara expressão de intolerância.
Podem, pois, os muçulmanos reclamar o respeito que lhes é devido nas sociedades livres e democráticas. Terão de fazê-lo, porém, na observância do quadro legal dessas sociedades, que separa o Estado e a sociedade civil (por isso, não pode um Estado ser responsabilizado pelo que é publicado num jornal), assim como separa o poder executivo e o poder judicial (sendo que é só a este que cabe dirimir este tipo de conflitos). E, sobretudo, que não permitem que a religião possa ser pretexto para manifestações de violência.
(...) Para evitar que, a partir de situações como esta, se desencadeie um conflito de civilizações, devem as sociedades democráticas ocidentais atender aos limites da liberdade de expressão e ao respeito devido aos sentimentos religiosos das pessoas. Mas, por outro lado, devem os responsáveis muçulmanos afirmar com vigor que é abusivo invocar o Islão como justificação para a violência.

Pedro Vaz Patto
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